Jards Macalé faz hoje 80 anos com vigor artístico e um futuro pela frente. Mal nenhum haveria se o cantor, compositor e músico carioca estivesse (sobre)vivendo das glórias do passado. Mas parece que a sina de Jards Anet da Silva, carioca nascido em 3 de março de 1943, é mesmo desafinar o coro dos contentes.

Com ânimo renovado e com disco de músicas inéditas previsto para abril, Coração bifurcado, Macalé lançou há quatro anos Besta fera, um dos melhores álbuns da discografia iniciada com o EP Só morto / Burning night em 1969, ano em o artista assombrou o público do IV Festival Internacional da Canção (FIC) com a performance de Gothan city (Jards Macalé e José Carlos Capinan, 1969).

 

De lá para cá, Macalé desafiou os muitos morcegos de um mercado sanguessuga, historicamente voltado para a música imediatista, ao subverter expectativas comerciais com obra pautada pela estranheza e criada com poetas, parceiros letristas do porte de José Carlos Capinan, Torquato Neto (1944 – 1972) e Waly Salomão (1943 – 2003).

Por sempre ter ignorado o movimento dos barcos ao traçar a própria rota, Jards Macalé desfruta hoje de liberdade e prestígio incomuns na indústria da música.

Para quem quer se iniciar no universo do artista, o cartão-de-visitas mais indicado é o primeiro álbum do cantor, Jards Macalé (1972), gravado sob direção musical do próprio Macalé, arquiteto de som cheio de eletricidade, formatado com mix de rock, samba, canção, blues, jazz e baião.

É nesse disco que o autor dá voz a temas autorais hoje emblemáticos, como Hotel das estrelas (Jards Macalé e Duda Machado, 1970) – citada no arremate do disco – e Mal secreto (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971), músicas apresentadas ao Brasil na voz de Gal Costa (1945 – 2022), também intérprete original de Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971).

Jards Macalé é artista musicalmente singular. Ainda assim, é possível traçar um paralelo entre as trajetórias de Macalé e Luiz Melodia (1951 – 2017), outro anjo torto da MPB. Ambos indomados, eles sempre se recusaram a dançar conforme a música ditada por diretores de gravadoras nos anos 1970 e 1980, quando essas companhias praticamente atuavam como feudos, recompensando somente os que eram fiéis aos princípios empresariais.

Macalé nunca abriu mão da liberdade criativa, de experimentar inovações na concepção de cancioneiro gravado com ecos de bossa nova, rock e blues – este evidenciado sobretudo no canto por vezes ruminado do artista – e com devoção a gêneros musicais cariocas como samba, samba-canção e choro.

A rigor, o artista jamais abriu mão da coerência na construção da discografia que ganhará em abril o 18º álbum, o já mencionado Coração bifurcado. E também jamais abriu mão do personagem Macalé.

Sim, é como se Macalé fosse um personagem vivido com total domínio pelo cidadão Jards Anet da Silva. Um personagem criado com a verdade da alma do artista, mas ainda assim um personagem que mixa a figura do malandro arquetípico do samba carioca com o anjo torto provocador de temperamento forte.

Munido do violão de toque também singular, burilado com a autoridade de quem teve formação musical erudita, Macalé é senhor intérprete do próprio cancioneiro – a ponto de nunca ter se deixado calar pelo fato de ter tido canções amplificadas em vozes sobressalentes como as de Gal Costa e Maria Bethânia – e de obras alheias.

Macalé sabe cantar o samba de Ismael Silva (1905 – 1980) e dar voz às amarguras de Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), para citar somente dois compositores presentes na obra fonográfica do cantor.

Jards Macalé é tão vanguardista que teve a primeira música gravada em 1964 – Meu mundo é seu, parceria com Roberto Nascimento – por Elizeth Cardoso (1920 – 1990), cantora reconhecida pelo apego às tradições da música brasileira.

É provável que nem Elizeth e tampouco Macalé desconfiassem naquele seminal ano de 1964 que o futuro anjo torto iria trilhar o caminho da vanguarda, o mesmo no qual se encontra hoje ao festejar 80 bravos anos com renovado vigor artístico.

G1