A chegada de dois aviões da Força Aérea russa carregados de militares e armamentos à Venezuela, no último fim de semana, gerou uma série de especulações e reacendeu o temor de uma escalada da tensão internacional.
A crise no país se agrava desde janeiro deste ano, quando o líder oposicionista Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino, acusando Nicolás Maduro de usurpar o poder por meio de eleições ilegítimas.
O cenário da Venezuela, que vem sofrendo com diversos apagões, expôs a rivalidade do país sul-americano com os Estados Unidos e seus aliados (que apoiam Guaidó); por outro lado, Rússia, Cuba e China seguem, por razões diversas, dando suporte ao governo chavista.
A presença militar russa na Venezuela foi alvo de protestos do secretário de Estado americano, Mike Pompeo - os EUA foram os primeiros a reconhecerem Guaidó como presidente interino.
Em conversa por telefone com o ministro das Relações Exteriores russo, Serguéi Lavrov, Pompeo disse que Washington "não ficaria de braços cruzados, enquanto a Rússia exacerbava as tensões na Venezuela".
Os Estados Unidos afirmam que todas as cartas estão na mesa, sem descartar uma eventual ação militar do país sul-americano. Essa posição é partilhada pelo Brasil.
A colaboração militar da Rússia com a Venezuela chavista não é novidade.
Os russos foram, junto com os chineses, os principais fornecedores de material bélico para Caracas desde a Revolução Bolivariana, liderada por Hugo Chávez, quando chegou ao poder em 1999.
Disposto a transformar a Venezuela em uma potência regional capaz de contrapor o poder dos EUA, Chávez investiu uma grande quantia proveniente das receitas de petróleo na modernização da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb).
Por anos, a Rússia abasteceu o país com vários modelos de aeronaves e helicópteros, assim como tanques e unidades de artilharia.
Uma das principais contribuições russas foi a venda de caças Su-30Mk2 que, de acordo com especialistas, era capaz de competir com os aviões de combate americanos mais avançados, graças ao seu poder de fogo, capacidade de manobra e desempenho.
A indústria militar russa forneceu ainda tanques e unidades de artilharia.
Além disso, as Forças Armadas venezuelanas adotaram os fuzis kalashnikov, possivelmente a arma russa mais fabricada no mundo, e concordaram até mesmo em construir uma unidade para produção do mesmo na cidade de Maracay.
Fora o abastecimento de armas, o Exército russo realizou exercícios de cooperação militar em território venezuelano, sendo o último deles em dezembro do ano passado.
Com a crise econômica vieram os problemas
"Os russos apostaram muito na Venezuela, mas descobriu-se que não recebiam", disse um especialista à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol), sob condição de anonimato.
Segundo ele, os problemas de liquidez venezuelanos afetaram a cooperação técnico-militar.
"Nos últimos anos, eles tentaram que os russos e os chineses cuidassem da manutenção, mas o problema é que agora eles não conseguem pagar ninguém", afirmou o especialista entrevistado pela BBC.
Os problemas se agravaram a partir de 2014, quando a economia venezuelana começou a sofrer um declínio acentuado.
A falta de recursos colocou em xeque a capacidade operacional das equipes venezuelanas, algo que o governo Nicolás Maduro parece interessado em resolver, depois de os Estados Unidos terem insistido em manter aberta a possibilidade de uma intervenção militar para promover a troca do atual governo.
De acordo com a agência de notícias estatal russa Sputnik, uma fonte anônima da embaixada russa em Caracas disse que "a Rússia tem vários contratos em vias de terminar, contratos de natureza militar".
Uma das hipóteses levantadas pelos analistas para explicar a chegada do último contingente russo é que se trata de uma equipe dedicada a concretizar o planejamento de manter em dia os equipamentos que a Venezuela já comprou da Rússia.
Um especialista militar estrangeiro que vive em Caracas e que pediu para não a ser identificado disse à BBC News Mundo, que "há muitas dúvidas sobre a capacidade operacional real do arsenal (da Venezuela), devido à falta de manutenção", outra consequência da crise econômica grave que o país enfrenta.
A escassez de peças de reposição é visível mesmo na base aérea em La Carlota, no coração de Caracas, onde os helicópteros ali estacionados sofrem o que no jargão militar é conhecido como "canibalização", ou seja, o uso de partes de aeronaves em bom estado para a reparação de outras danificadas.
A falta de reparo e de peças sobressalentes torna-se um problema particularmente sério para o arsenal mais antigo, como os helicópteros de transporte de fabricação francesa, os Super Puma, ou os caças americanos F-16, que foram adquiridos antes do triunfo da Revolução Bolivariana em 1998.
O sistema antimíssil S-300
Durante o governo Chávez, a Venezuela também comprou mísseis antiaéreos russos que ajudaram a estabelecer o que o especialista europeu consultado pela BBC News Mundo descreveu como "o melhor sistema de defesa aeroespacial da região".
Um desses equipamentos é o S-300, sistema de defesa antiaéreo que operou acima do normal no mês de fevereiro, segundo a ISI, empresa especializada na coleta e análise de imagens via satélite para elaborar análises de inteligência.
No mês de fevereiro, a tensão entre Maduro e Guaidó atingiu seu ápice e um ataque americano parecia mais provável.
A ISI detectou diferentes exercícios militares com o S-300 na base aérea de Capitán Manuel Ríos, localizada em El Sombrero, no estado de Guárico, no centro da Venezuela.
Essa "atividade significativa", como descrita pela ISI, levou alguns analistas a pensar que a chegada de militares russos poderia estar relacionada à manutenção ou ao manuseio desses equipamentos.
O S-300 tem sido um elemento presente na guerra na Síria, contribuindo para que as forças do presidente Bashar al-Assad, aliado da Rússia, prevaleçam.
No entanto, quando o presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou o lançamento de mísseis Tomahawk contra a Síria em resposta ao suposto uso de armas químicas contra a população civil, o S-300 não os interceptou.
Qual é o tamanho do efetivo das Forças Armadas da Venezuela?
De acordo com dados do Ministério da Defesa do país, a Força Armada Nacional Bolivariana tem entre 95 mil e 150 mil integrantes, número que não inclui os membros da Milícia Nacional Bolivariana, um grupo paralelo descrito como paramilitar pelos críticos do governo e formado por voluntários que assumem várias funções a serviço do Estado.
Esses milicianos recebem treinamento no manejo de armas e usam rifles antigos que pertenciam anteriormente ao Exército.
A Milícia Nacional baseia-se na premissa da "união cívico-militar", cunhada pelo presidente Hugo Chávez, morto em 2013, pela qual toda a sociedade deve complementar o esforço do Exército na "defesa da nação".
Maduro manteve seu compromisso com a milícia, apesar das acusações de militarização da vida civil e anunciou, em janeiro deste ano, que o corpo de segurança está próximo de atingir 2 milhões de integrantes.
Não há informações precisas, no entanto, sobre o número real de integrantes e a qualidade de seu armamento e treinamento militar.
Também formam as Forças Armadas os integrantes da Guarda Nacional, um corpo militar responsável pela ordem pública e pela proteção dos cidadãos. Conhecida por todos os venezuelanos, uma de suas atribuições mais comuns é fazer o policiamento das ruas e das rodovias do país.
Nos últimos anos, a Guarda Nacional vem ganhando maior destaque pela repressão violenta contra os manifestantes de oposição, especialmente durante os protestos de 2017, e sua conduta tem sido objeto de polêmica. Também não há informações precisas sobre o tamanho do efetivo da Guarda Nacional.
Da BBC