A floresta que 'brotou' no meio do entulho em São Paulo com plantio de 41 mil mudas
Nas últimas duas décadas, uma área na Zona Leste de São Paulo — uma das regiões mais populosas da cidade — viu brotar uma verdadeira floresta onde antes só havia entulho e um terreno degradado.
Com o plantio de dezenas de milhares de árvores, o agora Parque Linear Tiquatira virou um refúgio de lazer e atividade física para os moradores do local, que fica na Vila São Geraldo, na divisa entre os distritos da Penha e do Cangaíba.
Mais que isso, a existência dessa enorme área verde numa região densamente populada ajuda a lidar com o calor, segundo cientistas e frequentadores, e atrai para a região muitas espécies de aves e outros seres vivos, que não eram vistos ali há muito tempo.
E todo esse projeto começou com a iniciativa de uma pessoa: Hélio da Silva.
Aos 73 anos, ele é mais conhecido como "o plantador de árvores", graças ao trabalho que tomou para si nos últimos 22 anos.
Nesse período, Silva plantou mais de 41 mil mudas, todas devidamente registradas em fichários e cadernos, e motivou a criação desse parque linear na capital paulista.
Teimosia para vencer a resistência
Silva nasceu na cidade de Promissão, no interior paulista, e mudou-se para a capital com a família na infância, quando tinha oito anos de idade.
Ele mora na Zona Leste da cidade há 65 anos e fez carreira como executivo de importantes empresas do setor açucareiro.
Antes de ir para o trabalho todas as manhãs, Silva gostava de fazer caminhadas pelo Tiquatira. À época, o local tinha apenas um gramado e algumas árvores esparsas .
"Numa dessas andanças, percebi que a região estava ficando cada dia mais degradada. Aos poucos, o Tiquatira virava um depósito de lixo, surgiam minicracolândias, pessoas usavam o local como um motel a céu aberto, comerciantes aproveitavam para transformar os terrenos em estacionamentos de carros", lista ele.
Numa manhã de novembro de 2003, ele teve uma ideia.
"Falei para a minha esposa: vou mudar tudo aqui nos próximos dez anos", projetou ele.
"Ela me perguntou o que eu ia fazer. E disse: vou trazer de volta as árvores que existiam aqui há 150 ou 200 anos."
Silva relata que foi totalmente desencorajado pela família e pelos amigos. Não é que eles não gostassem da ideia, só achavam uma iniciativa dessas poderia incomodar e representar até um risco à segurança dele próprio.
"Mas pensei: se acontecer tudo o que eles falavam, ou seja, iriam me agredir, destruir as árvores, o poder público e os comerciantes viriam me ameaçar, é aí que faria mesmo", lembra ele.
Silva viajou para o interior paulista e comprou as primeiras 200 mudas de árvores para iniciar o projeto.
"Depois de três ou quatro meses do plantio, todas haviam sido destruídas."
A mesma cena se repetiu na segunda tentativa, quando ele espalhou 400 mudas pelo Tiquatira.
"E o pessoal me falava: 'Está vendo? Falamos que iam destruir tudo. E agora, o que você vai fazer?'", relata ele.
"Bem, agora eu vou plantar 5 mil árvores", respondeu à época.
Silva confessa que via esse desafio como um "gatilho", uma "provocação". A cada árvore destruída, ele sentia a necessidade de plantar mais duas, três ou quantas fossem necessárias para que os opositores da ideia desistissem.
Surge um novo parque
Após vencer essas primeiras resistências — e as árvores finalmente terem paz para crescer e prosperar — Silva começou a articular apoios para dar continuidade ao projeto.
Nessa época, ele conheceu um personagem relevante nessa história: Eduardo Jorge, que foi secretário do Meio Ambiente de São Paulo entre 2005 e 2012, durante as prefeituras de José Serra e Gilberto Kassab.
Em entrevista à BBC News Brasil, Jorge conta que a sua gestão promoveu uma "agenda de adaptação" às mudanças climáticas — e uma das ações era justamente expandir as áreas verdes da cidade.
O então secretário conheceu Silva no início de sua gestão na secretaria, durante uma feira comercial de produtos orgânicos, onde acabou convidado a visitar o Tiquatira.
"Eu fui e vi que ele já havia começado a plantar por iniciativa própria, com coragem e determinação. A depender da administração da vez, o projeto que ele havia começado era acolhido e visto com bons olhos; em outras, achavam que ele estava invadindo uma área pública", avalia Jorge.
"Nós passamos a incentivar o que ele estava fazendo no Tiquatira", pontua o ex-secretário.
Jorge detalha que orientou os agrônomos e as subprefeituras que atuam nessa parte da Zona Leste de SP a terem "boa vontade, em vez de prejudicar o trabalho" de Silva.
"Com isso, ele conseguiu acelerar ainda mais o plantio. Hoje, o Tiquatira é o maior parque linear dentro da cidade de São Paulo", comemora o ex-secretário.
O termo "parque linear" refere-se ao tipo de área verde que tem mais comprimento que largura.
No caso do Tiquatira, falamos uma "faixa verde" de 3 km de extensão e 192 mil m² de área que margeia um córrego de mesmo nome. Ele começa nas imediações da Marginal Tietê e segue até a Avenida São Miguel.
Aliás, o local foi oficialmente reconhecido como parque pela prefeitura em 2008 — embora a densidade atual da vegetação já faça muitos (incluindo o próprio Silva) a considerarem o local uma floresta urbana.
Segundo os registros de Silva, na época da oficialização do parque ele havia plantado cinco mil árvores. Atualmente, essa conta já ultrapassa a casa das 40 mil.
Vale destacar aqui que não existe nenhuma lei na cidade de São Paulo que proíba um cidadão de plantar uma árvore numa área pública ou particular.
No entanto, a prefeitura orienta que as pessoas interessadas em fazer isso solicitem uma autorização junto aos órgãos componentes.
A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente possui, inclusive, um manual para ajudar a escolher a espécie mais indicada para cada local.
Urbanizar a Mata Atlântica
Silva diz que sempre teve como objetivo trazer a Mata Atlântica — um dos seis biomas brasileiros, ao lado de Caatinga, Cerrado, Pantanal, Amazônia e Pampa — de volta à maior metrópole brasileira.
"A partir da urbanização, a Mata Atlântica foi expulsa, chutada para longe. Mas aqui é o lugar dela. Talvez não seja o nosso lugar, mas garanto que é o dela."
Não custa lembrar que a Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil. Essa região é o lar de 72% da população do país e concentra 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
Mesmo assim, restam apenas 24% da Mata Atlântica original. Disso, apenas 12% são consideradas áreas de floresta madura e bem preservada.
Vista aérea do TiquatiraCrédito,Vitor Serrano/BBC News Brasil tivo de importantes empresas do setor açucareiro.
Antes de ir para o trabalho todas as manhãs, Silva gostava de fazer caminhadas pelo Tiquatira. À época, o local tinha apenas um gramado e algumas árvores esparsas .
"Numa dessas andanças, percebi que a região estava ficando cada dia mais degradada. Aos poucos, o Tiquatira virava um depósito de lixo, surgiam minicracolândias, pessoas usavam o local como um motel a céu aberto, comerciantes aproveitavam para transformar os terrenos em estacionamentos de carros", lista ele.
Numa manhã de novembro de 2003, ele teve uma ideia.
"Falei para a minha esposa: vou mudar tudo aqui nos próximos dez anos", projetou ele.
"Ela me perguntou o que eu ia fazer. E disse: vou trazer de volta as árvores que existiam aqui há 150 ou 200 anos."
Silva relata que foi totalmente desencorajado pela família e pelos amigos. Não é que eles não gostassem da ideia, só achavam uma iniciativa dessas poderia incomodar e representar até um risco à segurança dele próprio.
"Mas pensei: se acontecer tudo o que eles falavam, ou seja, iriam me agredir, destruir as árvores, o poder público e os comerciantes viriam me ameaçar, é aí que faria mesmo", lembra ele.
Silva viajou para o interior paulista e comprou as primeiras 200 mudas de árvores para iniciar o projeto.
"Depois de três ou quatro meses do plantio, todas haviam sido destruídas."
A mesma cena se repetiu na segunda tentativa, quando ele espalhou 400 mudas pelo Tiquatira.
"E o pessoal me falava: 'Está vendo? Falamos que iam destruir tudo. E agora, o que você vai fazer?'", relata ele.
"Bem, agora eu vou plantar 5 mil árvores", respondeu à época.
Silva confessa que via esse desafio como um "gatilho", uma "provocação". A cada árvore destruída, ele sentia a necessidade de plantar mais duas, três ou quantas fossem necessárias para que os opositores da ideia desistissem.
Surge um novo parque
Após vencer essas primeiras resistências — e as árvores finalmente terem paz para crescer e prosperar — Silva começou a articular apoios para dar continuidade ao projeto.
Nessa época, ele conheceu um personagem relevante nessa história: Eduardo Jorge, que foi secretário do Meio Ambiente de São Paulo entre 2005 e 2012, durante as prefeituras de José Serra e Gilberto Kassab.
Em entrevista à BBC News Brasil, Jorge conta que a sua gestão promoveu uma "agenda de adaptação" às mudanças climáticas — e uma das ações era justamente expandir as áreas verdes da cidade.
O então secretário conheceu Silva no início de sua gestão na secretaria, durante uma feira comercial de produtos orgânicos, onde acabou convidado a visitar o Tiquatira.
"Eu fui e vi que ele já havia começado a plantar por iniciativa própria, com coragem e determinação. A depender da administração da vez, o projeto que ele havia começado era acolhido e visto com bons olhos; em outras, achavam que ele estava invadindo uma área pública", avalia Jorge.
"Nós passamos a incentivar o que ele estava fazendo no Tiquatira", pontua o ex-secretário.
Jorge detalha que orientou os agrônomos e as subprefeituras que atuam nessa parte da Zona Leste de SP a terem "boa vontade, em vez de prejudicar o trabalho" de Silva.
"Com isso, ele conseguiu acelerar ainda mais o plantio. Hoje, o Tiquatira é o maior parque linear dentro da cidade de São Paulo", comemora o ex-secretário.
O termo "parque linear" refere-se ao tipo de área verde que tem mais comprimento que largura.
No caso do Tiquatira, falamos uma "faixa verde" de 3 km de extensão e 192 mil m² de área que margeia um córrego de mesmo nome. Ele começa nas imediações da Marginal Tietê e segue até a Avenida São Miguel.
Aliás, o local foi oficialmente reconhecido como parque pela prefeitura em 2008 — embora a densidade atual da vegetação já faça muitos (incluindo o próprio Silva) a considerarem o local uma floresta urbana.
Segundo os registros de Silva, na época da oficialização do parque ele havia plantado cinco mil árvores. Atualmente, essa conta já ultrapassa a casa das 40 mil.
Vale destacar aqui que não existe nenhuma lei na cidade de São Paulo que proíba um cidadão de plantar uma árvore numa área pública ou particular.
No entanto, a prefeitura orienta que as pessoas interessadas em fazer isso solicitem uma autorização junto aos órgãos componentes.
A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente possui, inclusive, um manual para ajudar a escolher a espécie mais indicada para cada local.
Urbanizar a Mata Atlântica
Silva diz que sempre teve como objetivo trazer a Mata Atlântica — um dos seis biomas brasileiros, ao lado de Caatinga, Cerrado, Pantanal, Amazônia e Pampa — de volta à maior metrópole brasileira.
"A partir da urbanização, a Mata Atlântica foi expulsa, chutada para longe. Mas aqui é o lugar dela. Talvez não seja o nosso lugar, mas garanto que é o dela."
Não custa lembrar que a Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil. Essa região é o lar de 72% da população do país e concentra 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
Mesmo assim, restam apenas 24% da Mata Atlântica original. Disso, apenas 12% são consideradas áreas de floresta madura e bem preservada.
Mas o que significa "urbanizar a Mata Atlântica", como pretende Silva?
"Isso representa um resgate de nossa própria humanidade, de um convívio saudável com a natureza. Precisamos pensar a partir desse lugar, a metrópole de São Paulo, que está inserida na Mata Atlântica. Urbanizar então é devolver ao local esse direito [de ter mais áreas verdes]", responde o biólogo Cesar Pegoraro, mobilizador da causa Água Limpa da ong SOS Mata Atlântica.
"Manter uma área verde como essa [o Tiquatira] traz uma série de vantagens para o ambiente urbano e muitos incrementos à qualidade de vida das pessoas. Ter biodiversidade perto de onde moramos é muito importante para a estabilidade humana", complementa ele.
O especialista destaca como povoados, cidades e civilizações inteiras se instalaram em regiões com rios e natureza — e como essa troca com os recursos naturais foi, é e sempre será importante para a nossa espécie.
Para transformar o Tiquatira numa área densamente vegetada, Silva foi estudar um pouco de agronomia, para entender como otimizar esse trabalho.
"É preciso plantar a árvore certa no lugar certo", reforça ele.
Uma das estratégias que ele adota até hoje é a de plantar uma espécie frutífera a cada 12 mudas que vão para a terra. Todas elas são típicas da Mata Atlântica.
"Desde o primeiro dia foi assim. Essa é uma maneira de atrair pássaros, de atrair vida", explica ele.
Hoje em dia, basta fazer uma breve caminhada pelo Tiquatira para ver e ouvir dezenas de espécies de aves — frequentadores já avistaram até tucanos, que voam do Parque Várzeas do Tietê, que fica nas proximidades, até ali.
"Esses animais são grandes disseminadores de sementes e ajudam muito a plantar e espalhar as árvores", nota Silva.
Outro ser vivo que passou a aparecer com frequência na região foram as cigarras.
Quando a reportagem da BBC News Brasil visitou o Tiquatira pela primeira vez em novembro de 2024, o período de acasalamento desses insetos havia terminado há pouco e era possível ver centenas de carapaças deles nos troncos das árvores.
Mudanças profundas
Após duas décadas de trabalho e 40 mil árvores plantadas, Silva entende que a região está absolutamente transformada.
"A principal coisa que aconteceu aqui foi o resgate da autoestima das pessoas. Eu sinto o prazer que elas têm ao caminhar no parque", observa ele.
Quem circula pelo Tiquatira faz uma avaliação parecida.
Mariana, de 27 anos, realizava uma caminhada no parque quando parou para conversar com a reportagem da BBC News Brasil.
Ela diz que se sente feliz de ter uma área verde próxima de casa para se exercitar.
"As pessoas passaram a frequentar muito mais o parque. Agora ele está bonito e bem estruturado. Abriram mais comércios ao redor, então temos mais bares e restaurantes, que atraem muita gente", observa ela.
Mariana também diz que o Tiquatira ganhou uma importância na vida cotidiana dela. "Esse é um lugar que venho para desestressar, fazer amizades, conhecer as pessoas e observar os bichinhos que passam por aqui", lista ela.
Já Neide, que circula por essa região de São Paulo há 37 anos e mantém uma barraca onde vende bebidas e alguns petiscos no parque, afirma que "não trocaria o Tiquatira por nada".
"Esse lugar representa meu trabalho, meus amigos, as várias pessoas que conheci e amo", confessa ela.
Um refúgio contra o calor
O surgimento dessa verdadeira floresta urbana também ajuda a lidar com problemas cada vez mais frequentes relacionados às mudanças climáticas, como as ondas de calor.
A física Regina Maura de Miranda, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP) explica que as áreas verdes "são extremamente importantes em regiões urbanas".
"Parques, hortas, paredes com plantas, qualquer espaço com vegetação, todos são sempre bem-vindos", contextualiza ela.
"Isso se deve principalmente ao conforto térmico. Temos muitas evidências científicas que mostram que bairros arborizados apresentam temperaturas mais amenas."
A pesquisadora lembra que a Zona Leste de SP é uma das áreas mais impermeabilizadas da cidade.
"E quando vemos mapas de temperatura de superfície, essa região apresenta uma tendência de ter temperaturas mais altas", compara ela.
Os frequentadores do parque veem isso na prática.
"Quando chego no parque, já percebo um frescor. Quando estou no asfalto, nas ruas, mesmo nas proximidades, sinto muito mais calor", relata Mariana.
"Eu gosto de vir para o Tiquatira porque aqui é frequinho e isso ajuda a aliviar esse calorzão", complementa ela.
"Se não fossem essas árvores que fazem sombra, estaria bem pior o calor aqui", concorda Neide.
Os próximos passos
Silva ainda vai praticamente todos os dias no Parque Tiquatira e continua a plantar árvores — desde o início do projeto, ele custeou do próprio bolso a compra das mudas e de todos os insumos necessários, como adubo e fertilizantes.
"É muito gostoso plantar uma árvore. E mais gostoso ainda é vê-la crescer e te olhar. Enquanto nós conversamos aqui, elas escutam tudo o que dizemos", acredita ele.
Silva tem o costume de dialogar com as árvores — e diz que houve respostas, sempre no tempo das plantas.
O plantador de árvores deseja superar a marca de 50 mil mudas na terra do Tiquatira. Mas não acha que chegar a essa marca representará um fim do trabalho.
Ele também articula a instalação de pequenas bibliotecas públicas ao longo do parque, para que as pessoas possam pegar livros emprestados.
E ainda aceita os muitos convites para conversas e palestras, particularmente em escolas, onde deseja inspirar uma nova geração de plantadores de árvores.
"Eu já fiz um trato com Deus: não vou morrer, vou virar uma árvore."
"O dia que você quiser conversar comigo, basta vir aqui e falar. E talvez eu até te responda… Só não vale ficar com medo e sair correndo", brinca ele.
Da BBC News Brasil em Londres