Atentados, decapitações, populações em fuga, patrimônios históricos destruídos. Desde que o grupo fundamentalista Estado Islâmico começou sua ofensiva pela Síria e o Iraque ano passado, é difícil passarmos um dia sem esse tipo de notícia. Apesar de combatido por uma coalização formada por países árabes e os Estados Unidos, o ISIS (como é conhecido pela sigla em inglês) continua a avançar. Além de todas as atrocidades já mencionadas, sua interpretação radical do islamismo interfere também no futebol.
No começo deste ano, 13 adolescentes assistiam, pela TV, à partida entre Iraque e Jordânia pela Copa da Ásia. Eles estavam em Mosul, cidade iraquiana sob o controle do Estado Islâmico. Acabaram cercados e executados em público por integrantes do grupo. O crime foi relatado pelo grupo de ativistas "Raqqa is Being Slaughtered Silently", que divulga atos de violência e opressão do EI. O "crime" dos garotos, anunciado por alto-falantes, teria sido simplesmente o de assistir futebol.
Castigo para clássico e camisas
Em março deste ano, vários meios de comunicação internacionais noticiaram que, também em Mosul, a pena para quem assistisse ao clássico entre Barcelona e Real Madrid, pelo Espanhol, seria de 80 chibatadas. Um representante do Partido Democrata Curdo disse ao jornal inglês "The Sun" que as pessoas estavam proibidas de "assistir e jogar qualquer esporte, em particular o futebol, que é visto como um produto do ocidente decadente".
No mundo do ISIS, porém, abrir mão do "el clasico" pode não ser suficiente para se livrar de uma surra de chibata. Porque, de acordo com as mesmas fontes, a pena de 80 chibatadas também foi imposta a qualquer um que saia na rua usando uma camisa de time de futebol. Em especial dos grandes clubes europeus, pois fazê-lo é considerado idolatria pelo Estado Islâmico.
Pebolim decapitado
Outra "fatwa" (lei islâmica) baixada pelo ISIS nas regiões ocupadas diz respeito ao pebolim (ou totó, como é conhecido pelos cariocas). O simpático futebol de mesa jogado com bonequinhos é, sim, permitido. Desde que sem as cabeças. Mas a regra, traduzida por Jawad Al-Tamimi, especialista em Oriente Médio formado em Oxford, é clara em seu item número dois:
"O futebol de mesa é permitido desde que desprovido de estátuas e retratos. Isso significa que a cabeça é cortada da peça original do jogo."
Sobre essa orientação em particular, Al-Tamimi disse à CNN que "um dos objetivos do Estado Islâmico é apresentar esta imagem altamente religiosa, mostrando seu conhecimento da jurisprudência islâmica para justificar aos seus seguidores que eles são a autoridade moral."
Distorção
Como é de se imaginar, tal "conhecimento" parte de uma leitura enviesada dos ensinamentos islâmicos. "Não há nenhum versículo corânico que se refere explicitamente aos esportes em geral ou um tipo de esporte em particular", diz Frank Usarski, cientista das religiões da PUC-SP. Usarski, porém, explica que há uma sura (capítulo) do Alcorão que pode ser interpretada de modo a servir aos interesses do ISIS.
"A sura 5:90-91 proíbe jogos de azar. Daí existe a possibilidade de associar esta regra ao futebol profissional, com os contratos que garantem milhões de euros para os clubes e os jogadores e as corrupções por parte de alguns funcionários da Fifa. Os excessos estão também em alta tensão com a pretensão do islã de gerar no fiel humildade e autodisciplina, e privilegiar a oração em horários predefinidos", diz o especialista.
"Tendo estes aspectos em mente, o emir do Estado Islâmico em Diyala (uma das 18 províncias do Iraque) lançou, em novembro de 2014, uma fatwa que proíbe jogar futebol e assistir aos jogos. Sua justificativa: tratar-se-ia do esporte mais popular no Ocidente. Entrar nesta onda ameaçaria a integridade cultural do Islã. Além disso, no caso dos soldados do exército do Estado Islâmico, qualquer espetáculo desviaria a atenção dos combatentes na luta militar contra os inimigos", completa Usarski.
De craque a extremista
Como toda regra tem suas exceçãos, o ISIS permite que o futebol seja praticado. Mas só pelos seus combatentes. De acordo com o "Raqqa is Being Slaughtered Silently", soldados do ISIS se reúnem em um campinho para jogar peladas na cidade de Raqqa, no norte da Síria. Para os ativistas, a explicação seria a de que, apesar das supostas restrições religiosas ao esporte, o futebol seria bom para eles se manterem em forma e, claro, se distraírem um pouco.
Um dos líderes do Estado Islâmico, e um dos homens mais procurados do mundo, Abu Bakr al-Baghdadi já foi o melhor jogador de futebol entre os que frequentavam sua mesquita. "Ele era o Messi do nosso time", disse Abu Ali, ex-colega de al-Baghdadi, ao jornal inglês "The Telegraph".
Relatos da época em que o hoje chefão do ISIS era só um garoto tímido de Samarra, ao norte de Bagdá, dão conta de que ninguém o batia com a bola nos pés. E que ele era atacante. Hoje, sequer há certeza sobre as condições em que se encontra Al-Baghdadi: ele teria se ferido gravemente em um ataque aéreo americano em março deste ano. De qualquer modo, quem encontrar o ex-boleiro promissor e entregá-lo aos EUA leva uma recompensa de US$ 10 milhões.
O Islã não é inimigo do futebol
"O islamismo não tem nada contra o futebol. Ao contrário, apoia o esporte como um incentivador do trabalho em grupo e da solidariedade, além de fazer bem à saúde", diz o sheik Jihad Hammadeh, vice-presidente da WAMY (Assembleia Mundial da Juventude Islâmica) América Latina e vice-representante da Comunidade Islâmica no Brasil. "Nosso único porém é quando o futebol causa fanatismo e atitudes extremadas", explica.
Sobre a tal questão do pebolim e as interpretações do ISIS, Hammadeh é enfático. "O islamismo só proíbe a representação do corpo humano, como por exemplo retratos e estátuas, se isso levar à idolatria, o que não se aplica nesse caso. Mas oEstado Islâmico é uma deformação, e eu não me surpreendo com nada que vem deles."