"A crise causada pela pandemia de coronavírus reabriu discussões sobre os privilégios que a classe política brasileira tem e sobre como a redução desses benefícios poderia contribuir para a saúde pública. Nas redes sociais, eleitores questionam os altos salários de parlamentares e as verbas públicas que custeiam os fundos eleitoral e partidário. E parlamentares de diferentes partidos já falam em abrir mão de parte do próprio salário e do dinheiro partidário e eleitoral. Tudo para ser destinado ao combate à Covid-19 e a seus efeitos na sociedade. Mas, por mais que venha a ajudar, apenas isso pode ser insuficiente para fechar a conta.
Deputados protocolaram projetos de lei que determinam o repasse de recursos partidários e eleitorais para a saúde pública, ou que dão aos partidos a possibilidade de transferirem suas verbas ao Estado, algo vedado pelas normas atuais.
O conjunto variado de iniciativas encontra simpatia de diferentes congressistas, mas parte das propostas pode encontrar dificuldades jurídicas para a sua aplicação prática. A remessa do recurso, porém, é bem-vista pelo setor de saúde, que identifica subfinanciamento no sistema pública de atendimento médico.
Projetos que destinam verba eleitoral e partidária para o combate à Covid-19
Projetos dos deputados Ubiratan Sanderson (PSL-RS), Carla Zambelli (PSL-SP) e André Janones (Avante-MG) determinam que as verbas hoje previstas para o fundo eleitoral devem ser repassadas para o combate ao coronavírus. O texto de Zambelli também cita, com a mesma indicação de destinação, o dinheiro do fundo partidário.
O fundo eleitoral foi criado em 2017 pelo Congresso Nacional como uma compensação à proibição, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de doações a campanhas feitas por empresas. É uma somatória de verbas feita exclusivamente com recursos públicos, e tem como destinação específica o período eleitoral. Já o fundo partidário existe desde a década de 1990 e tem como objetivo permitir aos partidos seu funcionamento cotidiano, como o aluguel de sedes, pagamento de funcionários e outras despesas habituais. O valor previsto para 2020, somando fundo partidário e fundo eleitoral, é de cerca de R$ 3 bilhões.
Outras iniciativas também em tramitação na Câmara não restringem a possibilidade de transferência de recursos do fundo eleitoral à atual epidemia de Covid-19. Um exemplo é o Projeto 646/2020, assinado pela bancada do partido Novo e por outros parlamentares. O texto define que partidos possam ter o direito de enviar ao Tesouro Nacional, quando houver situações de calamidade, recursos dos fundos partidário e eleitoral que não foram utilizados. Proposta do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) tem teor semelhante.
"Projetos que reduzem salários de parlamentares e servidores
Existem também iniciativas para cortar o salário de parlamentares e seus assessores e redirecionar os recursos economizados para o combate à Covid-19. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) apresentou dois projetos com essa finalidade: um para reduzir em 50% o salário dos deputados e outro para diminuir, na mesma proporção, os vencimentos dos assessores. O texto também fala na redução da cota parlamentar, dinheiro que é colocado à disposição dos deputados para gastos como passagens aéreas, contratação de assessores e aluguel de escritórios. Kataguiri protocolou ainda um projeto que limita os gastos dos cartões corporativos, no período da pandemia, a 30% do registrado em anos anteriores.
Outras proposições para o corte de 50% do salário dos deputados foram protocoladas pelos deputados Rodrigo Coelho (PSB-SC) e Ruy Carneiro (PSDB-PB).
As primeiras estimativas são de que a redução apenas do salário dos parlamentares, nessa proporção de 50%, representa um montante de pouco mais de R$ 10 milhões ao mês. É pouco se comparado com o custo anual da Câmara, de R$ 1 bilhão, segundo a ONG Contas Abertas.
Mas há no Congresso uma ideia mais ousada, que poderia garantir muito mais dinheiro para o combate à Covid-19. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu na terça-feira (24) a redução também da remuneração dos servidores públicos federais de um modo generalizado – ou seja, dos três poderes.
Maia falou na possibilidade de corte de até 20% dos vencimentos dos servidores de maior remuneração. "Têm salários mais baixos, têm salários mais altos, acima da média dos 10% que ganham mais no Brasil. Então eu acho que a gente consegue uma economia, se você olhar uns R$ 18 bilhões por mês, se você tirar 15% a 20%, você vai ter uma economia de três meses que ajuda [no combate à Covid-19]”, declarou, em entrevista à Rádio Bandeirantes.
"Toda verba é bem-vinda", diz biomédico sobre combate à Covid-19
O Ministério da Saúde informou na quinta-feira (26) que precisa de R$ 10 bilhões adicionais para o enfrentamento ao coronavírus. Já o pagamento dos R$ 600 mensais para todos os trabalhadores informais prejudicados pela crise vai custar ao menos R$ 14,4 bilhões. A Câmara, que aprovou o projeto às pressas na quinta-feira (26), não informou se esse montante é mensal ou ao longo dos três meses em que o auxílio será pago (nesse último caso, seriam R$ 43,2 bilhões).
Desse modo, apenas essas duas medidas de combate ao coronavírus e de seus efeitos sobre os trabalhadores podem custar de R$ 24,4 bilhões a R$ 53,2 bilhões.
O biomédico José Alexandre Buso Weiller, doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP), avalia que uma contribuição de R$ 3 bilhões, que é a somatória dos recursos estimados para fundo eleitoral e fundo partidário, já seria significativa no combate à Covid-19. "Nós temos um sistema de saúde pública que é subfinanciado, e esse é um quadro de mais de 20 anos. Então qualquer adicional é importante", diz ele.
Para o especialista, a principal contribuição que o recurso adicional poderia trazer seria em uma eventual aplicação na rede municipal de saúde. "Esses R$ 3 bilhões deveriam ser direcionados aos fundos municipais [de saúde]. Para levar à ampliação das equipes das unidades básicas de saúde. Para uma atuação não só na contenção do problema, mas também com visitas domiciliares, mais cobertura vacinal, ampliação do turno de atendimento. Em situações como essa, o governo federal tem que atuar como um apoio, não como o executor da política pública", diz Weiller.
Já apenas o corte dos salários dos parlamentares teria um efeito mais simbólico (pouco mais de R$ 30 milhões em três meses). O que faria a diferença, de fato, seria a redução do salário do funcionalismo no período da crise, que poderia representar R$ 54 bilhões ao longo de três meses – praticamente o mesmo valor necessário para implantar o plano de combate ao coronavírus e à mitigação de seus efeitos sociais.
O deputado federal Eduardo Barbosa (PSDB-MG) avalia que, no momento atual, a tarefa do Congresso Nacional é de "trabalhar todas as possibilidades" de se ampliar os recursos para a saúde pública. "E essa [proposta de corte nos fundos partidário e eleitoral] é uma possibilidade real, com condição de prosperar", disse o parlamentar, que é médico. Na opinião do tucano, novas discussões devem ser realizadas para o atendimento do que ele define como as três prioridades de momento: financiamento da saúde, apoio à população mais pobre e recuperação econômica.
Já o deputado Paulo Pimenta (PT-RS) aponta que o debate sobre os fundos partidário e eleitoral precisa estar relacionado com a discussão acerca da realização da eleição de 2020, que passou a se tornar uma dúvida após os acontecimentos das últimas semanas. O petista questionou a viabilidade da manutenção dos partidos políticos caso haja reduções nas verbas do fundo partidário. "Não sei como seria operacionalizado esse processo. Há partidos que firmaram contratos de aluguel, contratos com funcionários", afirma.
Para Pimenta, uma medida mais eficiente e de aplicação veloz seria o combate aos "supersalários" do setor público, aqueles que extrapolam o teto delimitado na Constituição. "Basta cumprir a Constituição e determinar que nenhum servidor pode ganhar mais do que um ministro do Supremo Tribunal Federal. Isso já possibilitaria um valor correspondente a seis vezes o fundo eleitoral", declarou."
fonte Gazeta do Povo