A África é a pátria de nossas espécies e abriga uma diversidade genética humana maior do que qualquer outra parte do planeta. Estudos de DNA antigo de sítios arqueológicos africanos podem lançar luz importante sobre as origens profundas da humanidade. Uma equipe de pesquisa internacional sequenciou o DNA de quatro crianças enterradas há 8 mil e 3 mil anos em Shum Laka (Camarões), um local escavado por uma equipe belga e camaronesa há 30 anos.
Os resultados, publicados na revista “Nature”, representam o primeiro DNA antigo da África Ocidental ou Central, e alguns dos DNAs mais antigos recuperados de um contexto tropical africano. Eles permitem uma nova compreensão das profundas relações ancestrais entre o Homo sapiens primitivo na África Subsaariana.
Este estudo foi o produto da colaboração entre geneticistas, arqueólogos, antropólogos biológicos e curadores de museus da América do Norte (incluindo a Faculdade de Medicina de Harvard e a Universidade de Montreal); Europa (Museu Real Belga de Ciências Naturais, Museu Real da África Central, Universidade Livre de Bruxelas e campus de Madrid da Universidade de Saint Louis); Camarões (Universidade de Yaoundé, Universidade de Buea); e China (Universidade Duke Kunshan).
Preservação excepcional
Shum Laka é um abrigo rochoso localizado numa região de campos (Grassfields) dos Camarões. O lugar há muito tempo é apontado pelos linguistas como o provável berço das línguas bantos, um grupo amplo e diversificado de línguas faladas por mais de um terço dos africanos hoje.
“Linguistas, arqueólogos e geneticistas estudam a origem e a propagação das línguas bantos há décadas, e a região de Grassfields é a chave para essa questão”, disse Mary Prendergast, professora de antropologia e presidente de humanidades da Universidade de Saint Louis em Madri e coautora do estudo. “O consenso é que o grupo de línguas bantos se originou no centro-oeste da África, antes de se espalhar pela metade sul do continente depois de cerca de 4 mil anos atrás.”
Pensa-se que essa expansão seja a razão pela qual a maioria das pessoas da África Central, Oriental e Meridional está intimamente relacionada entre si e com os africanos ocidentais.
“Shum Laka é um ponto de referência para entender a história profunda da África centro-oeste”, disse Isabelle Ribot, antropóloga da Universidade de Montreal que escavou e estudou as sepulturas, e cujo nome figura entre os principais autores do estudo.
Registro bem datado
O sítio possui um registro arqueológico impressionante e bem datado, com datas de radiocarbono nos últimos 30 mil anos. Ferramentas de pedra, restos de plantas e animais e, eventualmente, cerâmica indicam coletivamente a caça e a coleta florestal em longo prazo e uma transição para a exploração intensiva de frutos de árvores.
Shum Laka é emblemático da ‘Idade da Pedra para o Metal’, uma era crítica na história da África Central e Ocidental que deu origem à metalurgia e à agricultura da Idade do Ferro. Durante essa época, o local serviu repetidamente como cemitério para famílias, com 18 indivíduos (principalmente crianças) enterrados em duas fases principais, há cerca de 8 mil e 3 mil anos.
“Esses enterros são únicos para a África Ocidental e Central, porque esqueletos humanos são extremamente raros aqui antes da Idade do Ferro”, disse Ribot. “Ambientes tropicais e solos ácidos não são bons para a preservação óssea, por isso os resultados do nosso estudo são realmente notáveis.”
Cientistas de Harvard coletaram amostras de ossos do ouvido interno de seis indivíduos enterrados em Shum Laka. Quatro dessas amostras produziram DNA e foram datadas diretamente no Laboratório de Radiocarbono da Universidade Estadual da Pensilvânia. A preservação molecular foi impressionante, dadas as condições do enterro, e permitiu a análise do DNA de todo o genoma.
Caçadores-coletores
Surpreendentemente, o DNA sequenciado das quatro crianças – um par enterrado há 8 mil anos e o outro há 3 mil anos – revela ancestralidade muito diferente da maioria dos falantes de banto de hoje. Em vez disso, eles estão mais próximos dos caçadores-coletores da África Central.
“Este resultado sugere que os falantes de banto que vivem nos Camarões e em toda a África hoje não descendem da população à qual as crianças de Shum Laka pertenciam”, disse Mark Lipson, da Faculdade de Medicina de Harvard e principal autor do estudo. “Isso ressalta a antiga diversidade genética nessa região e aponta para uma população desconhecida anteriormente, que contribuiu apenas com pequenas proporções de DNA para os grupos africanos atuais.”
A expansão da agricultura e pastoreio na África – como em outras partes do mundo – foi acompanhada por muitos movimentos de pessoas.
“Se você voltar a 5 mil anos atrás, praticamente todo mundo que vivia ao sul do Saara era caçador-coletor”, disse Prendergast. “Mas olhe para um mapa da África mostrando grupos de forrageamento hoje e você verá que eles são muito poucos e distantes entre si.”
Esse estudo contribui para um crescente corpo de pesquisas antigas de DNA que demonstram a diversidade genética antiga e a estrutura populacional apagadas pelas mudanças demográficas que acompanharam a disseminação da produção de alimentos.
Rara linhagem
Um dos indivíduos da amostra, adolescente do sexo masculino, portava um haplogrupo cromossômico Y raro (A00), encontrado hoje praticamente apenas no oeste dos Camarões. A00 é melhor documentado entre os grupos étnicos mbo e bangwa, que vivem não muito longe de Shum Laka, e é a primeira vez que isso é visto no DNA antigo.
A00 é um haplogrupo profundamente divergente, que se separou de todas as outras linhagens humanas conhecidas cerca de 300 mil a 200 mil anos atrás. Isso mostra que essa linhagem conhecida mais antiga de humanos modernos está presente na região centro-oeste da África há mais de 8 mil anos – e talvez muito mais.
Nova luz
Embora as descobertas não falem diretamente às origens da língua banto, elas lançam uma nova luz sobre várias fases da história profunda do Homo sapiens. Os pesquisadores examinaram o DNA das crianças de Shum Laka juntamente com o DNA publicado de antigos caçadores-coletores do leste e sul da África, bem como o DNA de muitos grupos africanos atuais. Combinando esses conjuntos de dados, eles poderiam construir um modelo de linhagens divergentes ao longo do passado humano.
“Nossa análise indica a existência de pelo menos quatro grandes linhagens humanas profundas que contribuíram para as pessoas que vivem hoje e que divergiram entre 250 mil e 200 mil anos atrás”, disse David Reich, da Faculdade de Medicina de Harvard e autor sênior do estudo.
Essas linhagens são ancestrais dos atuais caçadores-coletores da África Central e do sul da África e de todos os outros seres humanos modernos, com uma quarta linhagem sendo uma ‘população fantasma’ desconhecida anteriormente, que contribuiu com uma pequena quantidade de ascendência para o oeste e o leste africanos.
“Essa irradiação quádrupla – incluindo a posição de uma linhagem humana moderna ‘fantasma’ profundamente dividida – não havia sido identificada anteriormente a partir do DNA”, disse Reich.
Modelos anteriores de origem humana sugeriram que os atuais caçadores-coletores da África Austral, que se separaram de outras populações entre cerca de 250 mil e 200 mil anos atrás, representam o ramo mais profundo conhecido da variação humana moderna. No entanto, disse Lipson, “a nova análise sugere que a linhagem que contribui para os caçadores-coletores da África Central é igualmente antiga e divergiu de outras populações africanas na mesma época”.
Divergência profunda
Essa descoberta aumenta o consenso entre arqueólogos e geneticistas de que as origens humanas na África podem ter envolvido populações profundamente divergentes e separadas geograficamente.
A análise também revelou outro conjunto de quatro linhagens humanas que se ramificaram entre 80 mil e 60 mil anos atrás, incluindo as linhagens que mais contribuem para a ascendência nos atuais africanos do leste e oeste e em todos os não africanos.
Considerando esse novo modelo de relações populacionais humanas, os autores puderam mostrar que cerca de um terço dos ancestrais das crianças Shum Laka derivavam de uma linhagem intimamente relacionada aos caçadores-coletores da África Central e cerca de dois terços de seus ancestrais eram de uma linhagem diferente distante da maioria dos atuais africanos ocidentais.
“Esses resultados destacam como a paisagem humana na África há apenas alguns milhares de anos era profundamente diferente da atual e enfatizam o poder do DNA antigo de erguer o véu sobre o passado humano que foi lançado pelos recentes movimentos populacionais”, disse Reich.
REVISTA PLANETA