Do G1- Sentença determina que pássaro continue com dona. Ibama e Estado de São Paulo são condenados.
Justiça Federal garantiu a manutenção do vínculo de mais de 30 anos entre o papagaio Leco e uma viúva moradora em Santos.
A Justiça Federal garantiu a manutenção do vínculo de mais de 30 anos entre o papagaio Leco e uma viúva moradora de Santos, no litoral de São Paulo, que considera o pássaro como seu 'filho'. Diante da iminente apreensão da ave, por suposto crime em virtude de criá-la fora de seu habitat, a mulher ajuizou ação contra o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Estado de São Paulo. Ambos foram condenados.
De acordo com a sentença do juiz Décio Gabriel Gimenez, da 3ª Vara Federal de Santos, Ibama e Estado deverão promover, no âmbito de suas respectivas competências, os atos necessários à regularização da guarda do papagaio, em favor da autora da ação. Eles também não poderão realizar quaisquer ações tendentes à apreensão do animal e à aplicação de sanções relacionadas à sua posse.
Em sua decisão, o juiz federal considerou o relato da costureira Maria de Lourdes Oliveira, de 74 anos, dona do papagaio; as declarações de testemunhas, que residem no edifício da Rua da Paz, no Boqueirão, onde a viúva mora com o pássaro, e o laudo da veterinária Tália Missen Tremori, nomeada como perita pelo juízo. A médica especializada em animais examinou Leco e as condições do apartamento onde ele habita.
“O nível de bem-estar, físico e psicológico, do animal seria mais afetado na hipótese de perda da convivência com a autora”, concluiu Tália. Segundo ela, Leco é um papagaio-verdadeiro, nativo da fauna silvestre brasileira, cujo nome científico é Amazona aestiva. Com ampla concentração no território nacional, a ave não sofre ameaça de extinção, apesar da população decrescente, o que justifica programas de conservação da espécie.
No entanto, no caso específico de Leco, a veterinária constatou que ele se encontra bem tratado e adaptado ao ambiente em que vive, não tendo condições de ser introduzido ao habitat, devido ao tempo que já vive fora da natureza. A perita também avaliou como positiva a alimentação oferecida pela costureira ao papagaio: frutas, cenoura, milho, talos de espinafre, sementes de girassol e ração.
O processo
A guarda em cativeiro de animal da fauna silvestre é crime punível com multa e detenção de seis meses a um ano. Além disso, no âmbito administrativo, são previstas outras sanções. A legislação, porém, faculta ao juiz a possibilidade de deixar de aplicar a pena, considerando as circunstâncias do caso concreto, se for doméstica a guarda de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção.
Com fundamento nesta ressalva legal e baseado nas provas do processo, Décio Gimenez julgou procedente o pedido da viúva para que Leco não seja apreendido e tenha regularizada a sua situação perante os órgãos de proteção animal. O juiz federal ainda condenou o Ibama e o Estado a pagarem, cada um, a quantia de R$ 2 mil de honorários advocatícios em favor da dona do papagaio.
“Em tais circunstâncias, se afigura desarrazoada e desproporcional a apreensão administrativa do animal para retorno ao seu ambiente natural ou para sua soltura em outro cativeiro, uma vez que tal medida, em vez de lhe trazer benefícios, pode ocasionar significativos riscos à sua sobrevivência, pelo fato deste já se encontrar plenamente adaptado ao convívio e trato humano”, sentenciou Gimenez.
Em 8 de fevereiro de 2018, após denúncia, fiscais do Ibama foram ao prédio da viúva para apreender o papagaio. O ato apenas não se consumou porque a idosa não estava no apartamento. Representada pela Defensoria Pública da União (DPU), Maria de Lourdes ajuizou ação e a Justiça Federal lhe concedeu liminar no dia 23 de abril daquele ano para a ave continuar com a dona até o julgamento do processo.
A DPU sustentou que Leco sempre foi muito bem tratado, tendo grande apego com a sua criadora. O órgão de defesa acrescentou que a viúva agiu com boa-fé ao aceitar cuidar do pássaro há mais de 30 anos, não podendo a sua conduta ser interpretada como intenção deliberada de degradar o meio ambiente. Convencido do argumento, o juiz federal destacou na sua decisão que a idosa dedica “louvável grau de afeto e dedicação” ao papagaio.
União entre ave e idosa completa 36 anos
Sem filhos biológicos e viúva, a costureira divide um apartamento de cerca de 40 m² com Leco. Desconhecendo a data de nascimento do seu filho alado, Maria de Lourdes elegeu 12 de maio como o dia de seu aniversário e explica o motivo. “Nesta data, ele começou a morar comigo. Na próxima terça-feira, comemoramos 36 anos juntos”.
Porém, esta não é a idade do papagaio, mas o tempo em que está sob os cuidados da idosa. Com 41 anos no mínimo, o pássaro já era adulto quando Maria de Lourdes aceitou recebê-lo. Uma cliente da costureira era a antiga dona da ave havia cinco anos e não queria mais cuidar dela. Aliás, sequer a tinha batizado.
A viúva aceitou o encargo de ser mãe. A sua primeira providência foi dar um nome ao pássaro. Segundo a mulher, a inspiração surgiu da expressão “loreco”, em referência a um louro pequeno. Por considerar mais carinhoso e prático, passou chamá-lo de Leco. Pelo modo como reage, o papagaio demonstra ter gostado da denominação.
“Socorro” é uma das palavras mais faladas por Leco, mesmo não estando em situação de perigo. Ele a profere principalmente quando lhe dão “tchau”, informa Maria de Lourdes. O papagaio também gosta de dizer “hum, bom” e “miau, miau”, sem que isso revele necessariamente um conflito de gênero.
A aposentada diz que mantém Leco solto no apartamento. Ele voa pelo imóvel e não sai, mesmo estando as janelas abertas. Apenas à noite é recolhido à gaiola para repousar. Nas manhãs ensolaradas, o papagaio acompanha a costureira ao térreo do condomínio, onde pode esticar as asas e caminhar pela garagem, sem nada que o prenda.
Em relação à denúncia anônima recebida pelo Ibama, a idosa afirma que tem “quase certeza” de quem a tenha feito. “Disse isso no processo, mas não falei nome porque não posso provar. Todos sabem que cuido muito bem do Leco. Arrumei 12 declarações de vizinhos comprovando isso. Só não peguei mais, porque não me dei ao trabalho”, finaliza.
Por Eduardo Velozo Fuccia, G1 Santos
Foto: Michele de Souza Silva/Divulgação