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Zé Rodrix, Chico Buarque e Joyce Moreno na Passeata dos Cem Mil. Ao fundo, de óculos escuros, o poeta Vinicius de Moraes. Foto: Reprodução / Memorial da Democracia

Há 50 anos, no início da tarde de 26 de junho de 1968, a Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, foi tomada por uma manifestação que entrou para a história como um dos atos públicos mais contundentes em defesa da democracia e em repúdio aos excessos cometidos pelo então governo do general Costa e Silva.

O protesto, que ficou conhecido como a Passeata dos Cem Mil, foi organizado pelo Movimento Estudantil, sob a liderança de Vladimir Palmeira, estudante de Direito da FND (Faculdade Nacional de Direito). Com início às 14h, a manifestação, que antes mesmo de sair em marcha com destino a Assembleia Legislativa reuniu 50 mil pessoas em sua concentração, foi o ápice de uma escalada de atos públicos deflagrados dois meses antes, a partir de um dos episódios mais escandalosos da violência de Estado até ali praticada pelos militares, o assassinato do secundarista Edson Luís de Lima e Souto.

No começo da noite de 28 de março de 1968, Edson Luís, de 18 anos, paraense radicado no então estado da Guanabara, foi executado no restaurante universitário Calabouço, no centro do Rio, com um disparo à queima roupa no peito deflagrado por Aloísio Raposo, aspirante da Polícia Militar local.

O crime ocorreu durante a repressão a um protesto motivado pela falta de higiene do espaço, pela má qualidade das refeições servidas no Calabouço e também em defesa de livre acesso ao restaurante, uma vez que tinham início proibições seletivas de ingresso ao local justificadas como uma forma de coibir a inflitração de pessoas "estranhas".

Além de Edson Luís, que foi carregado por um cordão de colegas à Assembleia Legislativa e "velado" em uma mesa do saguão de entrada, outro estudante, Benedito Frazão Dutra, de 20 anos, morreria dias depois em consequência de outro disparo à queima roupa. As duas mortes desencadearam greves em universidades e o sem-número de maniefstações que culminou no histórico ato realizado há exatos 50 anos.

Com ampla adesão da classe artística, a Passeata dos Cem Mil foi marcado pela presença de alguns dos maiores expoentes da música popular brasileira do período, entre eles, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Edu Lobo, Gilberto Gil, Clementina de Jesus, Pixinguinha, Milton Nascimento, João da Bahiana, Nana Caymmi, Zé Rodrix, Donga, Nara Leão, Joyce Moreno e Vinicius de Moraes.

Além deles, estrelas do cinema, do teatro e da TV, como o cineasta Cacá Diegues, o dramaturgo Pascoal Carlos Magno, os atores Grande Otelo, Marieta Severo, Norma Bengell, Paulo Autran e Tonia Carrero, estiveram presentes. Engrossaram a fila de notáveis o jornalista Zuenir Ventura, autor do emblemático 1968: O Ano Que Não Terminou, e a escritora Clarice Lispector.

O clamor por liberdade de expressão e defesa do Estado Democrático de Direito, no entanto, culminou, meses depois, em um cerceamento ainda maior dos direitos civis e no recrudescimento do Estado de Exceção: em 13 de dezembro daquele ano, por meio do decreto do AI-5 (Ato Institucional nº 5), o País entrava no mais longo período de trevas da ditadura.

Algumas das consequências imediatas do AI-5: o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas de todos os estados do País foram fechadas por quase um ano (com exceção de São Paulo); sob argumento de defesa da “segurança nacional”, o decreto permitiu que o governo federal interviesse em todos os estados, cassando os direitos políticos dos governantes locais; qualquer ato público de conotação política, aberto ou fechado, foi considerado ilegal e passivo de prisão indiscriminada com o agravante de negação do direito ao habeas corpus; o estabelecimento da censura prévia na música, no cinema, na literatura, no teatro e na televisão, além do cerceamento das atividades da imprensa; autonomia do governo federal para suspender os direitos políticos e civis de qualquer cidadão considerado como subversivo.

Presos em São Paulo quatorze dias após o decreto, Caetano Veloso e Gilberto Gil tiveram as cabeleiras raspadas e amargaram quase dois meses de cárcere no Rio de Janeiro, antes de partirem para Londres. Pouco depois, com a barra pesada pós AI-5, Chico Buarque se mandou para a Itália, Edu Lobo partiu os Estados Unidos e Nara Leão foi viver uma temporada na França.

Uma apuração de Zuenir Ventura para a produção de 1968: o Ano Que Não Terminou revelou: somente no período de vigência do decreto (1968-1978), o AI-5 cassou, suspendeu os direitos civis e puniu mais de mil cidadãos brasileiros. Para a cultura do País, o saldo foi também lamentável: cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e 200 letras de canções foram censurados. Operação executada com um efetivo de mais de uma centena de agentes espalhados em diversos Estados pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão instituído com o AI-5 e que existiu até 1988, quando foi extinto pela nova Constituição.

A mordaça imposta pela ditadura ganhou reforço significativo em 26 de janeiro de 1970, quando o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, sancionou o decreto 1.077, imediatamente apelidado pelo jornal O Globo de Decreto Leila Diniz – uma alusão ao fato de a nova lei, que submeteu editoras de livros, jornais e revistas à censura prévia, ter sido criada logo após a atriz conceder uma entrevista bombástica ao tabloide O Pasquim, repleta de palavrões, em que Leila defendeu pautas como o livre arbítrio e o direito feminino ao sexo livre. Segundo declaração pública de Buzaid, o decreto fez-se necessário para “preservar a integridade da família brasileira, que guarda tradição e moralidade, combatendo o processo insidioso do comunismo internacional que insinua o amor livre para desfibrar as resistências morais da sociedade”.

Nesses dias de assombrosa falta de memória sobre os horrores da ditadura, nunca é demais falar também sobre os milhares de cidadãos arbitrariamente presos e torturados pelo regime e os 434 mortos e “desaparecidos” oficialmente documentados pela Comissão Nacional da Verdade.

Cinquenta anos depois, nesse momento de aguda instabilidade sociopolítica que enfrentamos, uma contrapartida com sabor de alento para o desejo obtuso de retroceder a um passado tão sombrio é saber que muitos artistas da nossa música ainda saem às ruas e somam forças para defender os princípios democráticos em nosso País. (do showlivre)