Imagens reais de atrocidades figuram no topo das mais vistas na internet e em sites de emissoras de notícias. De acordo com psiquiatras, neurologistas e psicólogos, essa atração aparentemente ilógica por cenas violentas está ligada às estruturas mais profundas de nossa mente

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Imagens reais de violência costumam aparecer no topo das mais procuradas na internet. Para milhões de pessoas, o impulso de acompanhar vídeos de crueldade causa horror, ao mesmo tempo em que as cenas parecem hipnotizar, com um magnetismo irrecusável. Por semanas, o filme do soco que o astro do futebol americano Ray Rice deu em sua mulher ou o vídeo das decapitações dos jornalistas americanos James Foley e Steven Sotloff estiveram entre os mais vistos em sites de notícias e emissoras de televisão ao redor do mundo. No Brasil, milhares de pessoas buscaram ver atrocidades como o menino Bernardo gritando por socorro, o garoto que teve o braço arrancado por um tigre no Zoológico de Cascavel, no Paraná, ou o bárbaro ataque que matou uma menina de 6 anos em São Luís, no Maranhão, mostrando que, ao mesmo tempo em que denunciam a barbárie, essas imagens provocam um fascínio.

Emoções como medo, terror, culpa, satisfação, vergonha ou pavor se misturam ao observar as cenas reais de violência. E, de acordo com os cientistas, a atração irresistível de apertar o play vem das estruturas mais profundas de nossa mente. “Nosso cérebro é formado para se importar com outros seres humanos. É natural se colocar no lugar do outro e somos seduzidos por qualquer circunstância que ofereça essa oportunidade”, diz o neurologista André Palmini, chefe de neurologia do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Evolução — Imagens violentas de assassinatos, decapitações ou esquartejamentos evocam situações vividas nos primórdios de nossa evolução. Há cerca de 8 milhões de anos, a sobrevivência dos antepassados do Homo sapiens envolvia a luta constante contra predadores agressivos e catástrofes naturais. Para enfrentar essa violência, o cérebro desenvolveu algumas estruturas e sistemas de neurônios que são ativados sempre que surgem situações de risco. Núcleos como a amígdala, que processa o medo, a ansiedade e o stress, entram em ação e liberam no organismo hormônios e neurotransmissores como dopamina, endorfina e adrenalina, que preparam o corpo para a reação: fugir ou confrontar a morte.

Para um chimpanzé, a história acaba aí e ele responde, automaticamente, ao perigo. Os homens, entretanto, têm a capacidade de reagir às ameaças por meio de outra área cerebral, que surgiu entre 200 mil e 100 mil anos atrás, junto com a nossa espécie: o córtex pré-frontal. Responsável pelas decisões conscientes, ele nos ajuda a controlar as reações naturais disparadas pela amígdala e a analisar, racionalmente, a melhor estratégia para a sobrevivência. Por isso, hoje, quando somos expostos a qualquer situação de terror ou violência, a região mais primitiva e a mais moderna do cérebro agem em conjunto.

“A violência toca áreas muito profundas da mente. Ao perceber o risco de vida, entramos em alerta e, só quando a imagem chega à consciência, avaliamos o tamanho do perigo e decidimos a resposta. Quanto mais real e próxima de nós, maior é o impacto”, afirma o psiquiatra Luiz Figueira de Mello, do Ambulatório de Ansiedade (Amban), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).

Uma das explicações para a atração por cenas de violência — reais ou ficcionais — é a força que exercem nas áreas mais antigas do cérebro, atingindo diretamente mecanismos e memórias de um passado ancestral, sobre o qual não temos nenhum controle. Se são de mentira, logo percebemos que estamos fora de perigo e o medo é controlado. “Se há riscos verdadeiros, como guerras ou conflitos que possam nos atingir, maiores são as reações. Medo, pavor e curiosidade estarão sempre envolvidos, mas a atitude em relação a eles vai depender da proximidade do perigo, da sociedade em que vivemos ou de aspectos pessoais”, diz Mello.

Empatia — Além do circuito do medo, outro mecanismo cerebral envolvido na observação de cenas violentas é o da empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro e compartilhar suas emoções e pontos de vista. O fascínio por vídeos reais de atrocidades faria parte de um sistema biológico que nos atrai para qualquer situação envolvendo outros seres humanos em sofrimento.

“Sabemos que o ser humano sente emoções quando experimenta uma vivência dolorosa ou imagina alguém passando por uma situação assim. Estudos demonstram que as mesmas áreas cerebrais são ativadas quando sentimos dor ou quando vemos alguém próximo a nós em sofrimento”, diz André Palmini.

Assim como a amígdala, responsável pelo medo, as áreas da dor estão em uma região profunda do cérebro, o mesencéfalo. Ao observarmos alguém sofrendo, essa zona é ativada, junto aos neurônios que respondem emocionalmente por essa sensação e outros núcleos cerebrais, responsáveis pelas relações humanas.

“Quando vemos alguém passando por um sofrimento, todas essas áreas da mente entram em ação e fazem com que a gente se coloque no lugar do próximo. Sentimos pena, compaixão e emoções que nos aproximam dos outros. Buscamos essas situações e somos atraídos por qualquer possibilidade de exercitar essa empatia. É um fascínio biológico, uma preocupação natural”, explica Palmini.

Dessa forma, cenas dolorosas ou de sofrimento provocariam em nossa mente não o prazer com o sofrimento alheio, mas uma atração por situações que nos façam experimentar o que o outro estaria passando. “Temos uma curiosidade motivada pela organização do cérebro. O ser humano é a principal personagem de nossa mente e tudo o que tem a ver com ele nos atrai”, diz o neurologista.

Insensibilidade — No entanto, a exposição frequente a imagens assim provoca uma reação mental conhecida como habituação. A partir do momento em que o cérebro percebe que as imagens não oferecem perigo ou dor, a ativação dos circuitos diminuiu, gerando uma insensibilidade às cenas. Trata-se de um mecanismo de defesa do organismo, para evitar a dor.

“A banalização do processo é perigosa. Quanto mais violenta é a sociedade, menos impacto têm as cenas de terror e, para causar respostas, as ações precisam ser novas e cada vez mais brutais”, afirma Palmini.

Além disso, a exposição frequente pode gerar stress, depressão e ansiedade. Um estudo publicado em agosto no Journal of The Royal Society of Medicine, analisando o impacto do contato com fotos e vídeos de violência em 116 jornalistas, mostrou que a visualização repetida das imagens podia provocar sintomas de ansiedade, depressão, stress pós-traumático e disfunção social.

“Mais que a duração dos vídeos é a frequência da visualização que tem o maior impacto. Imagens reais e violentas vistas muitas vezes, todos os dias da semana, são muito traumáticas e trazem riscos claros para a saúde mental”, diz o psiquiatra Anthony Feinstein, pesquisador da Universidade de Toronto, no Canadá, e líder do estudo.

Contradição — Isso acontece porque as cenas reais da violência nos obrigam a lidar com sentimentos poderosos como a crueldade, o ódio, a culpa, a vergonha ou a compaixão que, vividos de forma desordenada, podem ter impacto profundo na saúde mental.

“Essas imagens nos lembram de que não somos apenas seres guiados por princípios éticos, morais e religiosos, mas também somos formados de crueldade e violência”, diz o psiquiatra Mario Costa Pereira, professor da faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Momentos de grande tensão, como guerras ou conflitos, são os períodos em que a prática de atos violentos se torna socialmente aceitável. “Somos fascinados por esse poder, ao mesmo tempo em que ele nos causa horror. O limite que nos separa de nossa versão bárbara e da civilizada é muito tênue e essas cenas explicitam a ambivalência em que vivemos”, diz Pereira. “Por isso sentimos vergonha, culpa ou desconforto com a exibição crua do que somos capazes.”

Cenas de decapitações, esquartejamentos ou assassinatos brutais impactam não só áreas cerebrais antigas e responsáveis por sensações primitivas como medo, angústia ou empatia, mas também atingem algumas das emoções e sentimentos mais intensos do ser humano, como o ódio ou a compaixão. “Elas tocam em nosso lado mais negro e obscuro, como um espelho que revela o que temos de terrível e de sublime. Acima de tudo, seu fascínio vem da exibição de contradições profundamente humanas.”

Reportagem da Revista Veja